segunda-feira, 2 de abril de 2012

Uma crítica à URSS - Primeira parte: a crítica filosófica.

Considerações iniciais:

Ao se discutir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) necessário atentar para a separação entre “ser” (dimensão descritiva) e “dever ser” (dimensão normativa) – devendo a discussão ater-se somente à primeira dimensão. Isso se dá porque as perspectivas normativas são frutos não de dados objetivos e factuais, mas de teorizações filosóficas idealmente puras ou de especulações que extrapolam os limites de nossa experiência histórica.

Para explicar a importância da análise descritiva é válido citar o filósofo esloveno Slavoj Žižek – um marxista –, que afirma que “todas as melhores análises marxistas são sempre análises de um fracasso” (ŽIŽEK apud BUCKINGHAM et al). O que Žižek quer dizer é que há uma tendência entre os esquerdistas de remoer seus fracassos, pois isso permitiria “que se criem mitos sobre o que teria acontecido caso fossem bem-sucedidos” (BUCKINGHAM et al). Ele prossegue comentando que essa postura “permite evitar questões reais, tais como reavaliar a natureza da revolução política” (idem). E é justamente nessas questões reais que devemos nos focar.

Assim, falarei aqui somente daquilo que os fatos históricos e a experiência real podem de alguma forma comprovar, ainda que seus significados sejam passíveis de interpretações divergentes. Para estruturar a discussão, as críticas serão divididas em três aspectos: aspecto filosófico, aspecto sociopolítico e aspecto econômico. Sem mais demora, partirei para o primeiro aspecto.

1. Crítica ao aspecto filosófico:

1.1. O historicismo e a dialética:
De início, vale explicar o historicismo do qual se vale o pensamento marxista. Ele tem suas origens no filósofo idealista alemão Hegel. A filosofia hegeliana gira em torno da noção de “dialética”, que pode ser exposta da seguinte forma: cada noção, ou tese, possui em si sua contradição, a antítese, a qual só é solucionada com o surgimento de uma nova noção mais abrangente, a síntese. Tal processo continua a acontecer em espiral, alcançando níveis cada vez mais elevados; ou seja, cada síntese se torna uma nova tese, à qual corresponde uma nova antítese, cuja resolução leva a uma síntese ainda mais elevada.

A dialética hegeliana

Hegel liga esse processo à consciência humana, ou Geist. Isso leva à conclusão de que “a natureza da consciência tem mudado através do tempo e de acordo com um padrão visível na História” (BUCKINGHAM et al) – sendo, portanto, toda a realidade um processo histórico. Ademais, Hegel afirma que esse desenvolvimento histórico da consciência não ocorre ao acaso, possuindo de fato um sentido e uma finalidade. A tal finalidade, o “Espírito absoluto”, corresponde o conhecimento completo.

Como dito, Marx se baseia na dialética hegeliana. Porém, não aceitando seu caráter idealista, traz a ela o materialismo. Assim surge o materialismo histórico-dialético, ligado já não ao Geist, mas às relações de produção. É de acordo com essa noção que Marx e Engels (1998) afirmam que “a luta de classes é o motor da História”, e identificam como sua finalidade a sociedade sem classes, isto é, a sociedade comunista – surgida do atrito entre a burguesia (tese) e o proletariado (antítese).

A dialética marxista

Com base em tais noções, Marx acredita ter consolidado uma teoria “científica” do socialismo. No entanto, o método dialético marxista apresenta muitas falhas em relação à metodologia científica e ao rigor lógico. Entre outros críticos, o mais influente filósofo da ciência do século XX, Karl Popper, posiciona-se contra qualquer tentativa de fundamentação de leis gerais do desenvolvimento histórico, bem como qualquer tentativa “científica” de previsão histórica.

Popper (1980) afirma que não existem tais leis, mas apenas certas tendências – as quais são sempre passíveis de mudança, devido à imprevisibilidade tanto de fatores da Natureza quanto do próprio ser humano. Ademais, a realidade histórica é composta e influenciada por uma infinidade de fatores, sendo impossível reduzi-la a um só fator, como a luta de classes; da mesma forma, como nota Weber (2006), os seres humanos são influenciados por diversos fatores para além de seus interesses de classe. E, afinal, a força da criatividade e da inventividade humana nos permite produzir uma variedade de opções e de escolhas através das quais efetivamente fazemos a História, sendo inviável “ver todos os eventos da História dependentes de grandes causas originais ligadas pela corrente da fatalidade, como que eliminando os homens da história da raça humana” (TOCQUEVILLE apud ARENDT). Não há, portanto, absolutamente nenhuma base cientificamente rigorosa ou segura o suficiente na qual possam se basear supostas leis gerais da História.

A refutação do historicismo feita por Popper pode ser resumida em quatro pontos encadeados: toma-se por premissa que o curso da história humana é fortemente influenciado pelo aumento do conhecimento e da tecnologia; não se pode predizer, racional ou cientificamente, a expansão futura do nosso conhecimento; logo, não é possível prever o futuro curso da história humana; portanto, não se pode haver nenhuma teoria científica do desenvolvimento histórico que sirva como base para a predição histórica. Desse modo, é aniquilado o objetivo de métodos historicistas como o de Marx.

Refutando-se o método histórico-dialético marxista, refuta-se a crença no socialismo como uma necessidade histórica e como um inevitável porvir. Dessa forma, passa-se a entender sua implantação, tal como ocorrida na URSS, como um ato arbitrário – e não raro violento – de imposição, realizado por alguns poucos que, embora digam apenas seguir fielmente as “leis da História”, na verdade a tomam para si e a moldam de acordo com seus próprios interesses e com crenças que supõem ser superiores e “verdadeiras”.

1.2. A moral teleológica:
A filosofia socialista não desenvolveu nenhuma teoria ética formal. Isso se deve, em grande parte, ao conceito de práxis revolucionária – que prega a constante transformação das circunstâncias, tanto em termos de teoria quanto em termos de prática. No entanto, fica claro que os socialistas se baseiam largamente numa moral teleológica – consolidada sob a noção de “moral revolucionária”.

Teorias teleológicas (telos = fim) são aquelas que buscam explicar a finalidade dos seres. Aristóteles afirmava que o Bem é o fim a que todo ser aspira (BUCKINGHAM et al). Uma moral teleológica, portanto, é aquela que define o Bem como um fim universal, comum a todos. O Justo, por sua vez, seria apenas tudo aquilo que maximiza o Bem. Ou seja, tomada ao extremo, é a doutrina moral que define que “os fins justificam os meios” (desde que sejam “bons fins”).

Na doutrina socialista, o Bem é a própria sociedade socialista. Assim, legitima-se qualquer ação que busque alcançar esse fim – como prega a “moral revolucionária”. De fato, Lênin (apud MORENO) defendia a necessidade de uma “guerra prolongada, tenaz, desesperada, a morte” em nome do ideal socialista – que, segundo Trotsky (idem), seria “o maior bem da Humanidade”. Ou seja, em nome de supostos fins universalmente desejáveis, justificam-se barbáries universalmente inomináveis.

Para além de seu aspecto consequencialista, a moral revolucionária do socialismo também tem um caráter extremamente coletivista. De acordo com o líder revolucionário argentino Nahuel Moreno, a moral socialista exige que as necessidades individuais, bem como a liberdade e o prazer, “estejam subordinados e sejam assimilados em função de nossas normas morais, que têm seu objetivo central: a revolução e o partido” (MORENO). Ele prossegue afirmando que “a vida, a moral, a consciência e o próprio corpo físico do camarada de partido valem muito mais que si mesmo” (idem).

Percebe-se, pois, que, ao se seguir a moral socialista, o indivíduo – com sua dignidade, personalidade, seus direitos, escolhas, opiniões, desejos, potencialidades – é inteiramente eclipsado por barganhas políticas e cálculos de interesses sociais (definidos arbitrariamente por um planejamento central). Ignora-se que os indivíduos possuem diferentes concepções particulares acerca do Bem e do Justo, e que eles tendem a defender seus interesses e crenças próprios, acima dos demais. Além disso, como nota o sociólogo Álvaro de Vita, essa moral só pode operar com “exigências motivacionais heroicas” (VITA) feitas a cada indivíduo – exigências que vão muito além do razoável, e que não podem se sustentar sem o auxílio de uma forte coerção que obrigue os indivíduos a realizá-las.

Em oposição à moral teleológica socialista, há a moral deontológica de tradição liberal. Segundo essa formulação, o ato moral é definido pelo dever (deon = dever). Segundo Kant, o dever é definido pela razão individual (universal) dotada de autonomia – sendo portanto auto-imposto, e não imputado por terceiros.

Moral deontológica e moral teleológica

Com base nessas noções, Kant formula uma lei moral universal, o imperativo categórico, com duas formulações. São elas (1) o próprio imperativo categórico, que diz: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por sua vontade, lei universal”; e (2) o imperativo prático, que diz: “Age de tal modo que trates a humanidade, tanto em tua pessoa como na de qualquer outro, sempre como um fim em si mesmo e nunca como apenas um meio” (KANT).

As leis morais formuladas por Kant, apropriadas pelo liberalismo político, indicam as extensões e os limites de nossas ações, quando pautadas na racionalidade e na razoabilidade. Ou seja, nem o melhor dos fins justifica o uso de meios imorais. Tais leis trazem, também, as noções de liberdade e de dignidade humana – nas quais se baseiam, inclusive, os Direitos Humanos. Isso significa que todo e qualquer indivíduo possui, independentemente de quaisquer circunstâncias, certos direitos e liberdades fundamentais inalienáveis; ou seja, como escreve John Rawls (1997), “cada pessoa tem uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar”.

Justamente por manter todos os indivíduos a salvo de contingências e arbitrariedades da vida social e política e garantir-lhes certos direitos que nada pode suprimir, a moral deontológica me parece muito mais satisfatória como fundamento para a organização social e para a ação política que verdadeiramente preze pela liberdade e por alguma igualdade.

Porém, não é difícil perceber que os revolucionários soviéticos davam pouca importância aos direitos individuais inalienáveis – inclusive o primeiro deles: a vida. Pelo contrário, estes eram colocados em segundo plano sempre que representavam um empecilho ao projeto socialista, sendo os indivíduos discriminados (de acordo com sua classe social, posição política, etnia etc.) segundo uma lógica que George Orwell (2003) deixa sarcasticamente clara em seu livro A Revolução dos Bichos: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. Afinal, os indivíduos eram tratados pelos líderes soviéticos não como fins em si mesmos, mas como meios para que se atingisse um determinado fim (o Estado socialista).

Tais formas de pensar justificaram e legitimaram as formas de agir opressoras e violentas com que o Estado soviético por tanto tempo dominou o povo, e em especial aqueles que tinham a audácia de dele discordar ou de, por algum motivo, ser-lhe um obstáculo.

1.3. Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BUCKINGHAM, Will et al. O livro da filosofia. Tradução de Rosemarie Zielgemaier. São Paulo: Globo Editora, 2011.

KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Lourival de Queiroz Henkel. Rio de Janeiro: Brasil Editora, 1967.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.

MORENO, Nahuel. A moral e a atividade revolucionária. Disponível em: < http://www.marx ists.org/portugues/moreno/1969/moral/cap01.htm>. Acesso em: 01/04/2012.

ORWELL, George. A revolução dos bichos. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Globo Editora, 2003.

POPPER, Karl. A miséria do historicismo. Tradução de Octany S. da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo: EDUSP, 1980.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

VITA, Álvaro de. Uma concepção liberal-igualitária de justiça distributiva. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091999000100003. Acesso em: 01/04/2012.

WEBER, Max. A "objetividade" do conhecimento nas ciências sociais. Tradução de Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 2006.

2 comentários:

  1. Este post está bem escrito... mas, pelo conteúdo fiquei em dúvida se você transcreveu literalmente o conteúdo de outro lugar. Pode usar, mas lembre-se de colocar sua visão também...
    parabéns

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  2. Relaxa, professor! O texto é original, sim ;) Pode até checar no Google, haha. Por via das dúvidas, adicionei a bibliografia que usei e coloquei as devidas referências às citações que fiz... Espero que esteja tudo ok.

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